quarta-feira, 6 de agosto de 2014

Surpreendentes leitores

Publicação: 06 de Agosto de 2014 às 00:00 | Comentários: 0
Fonte: Tribuna do Norte.
Nivaldete Ferreira*

Ficar a pé tem me trazido ótimas surpresas. Primeiro, foi um moço dono de um bibliotáxi. Ele pendura uma sacola com livros atrás do seu assento e explica: “Quem se interessar pode ir lendo enquanto chegamos ao destino. Aliás, tenho um sonho: publicar um livro com histórias de passageiros. Sou doido por livro”. Disse que tem graduação, mas que não conseguiria se adaptar a um trabalho numa sala fechada. “Gosto de falar com as pessoas, de movimento, e trabalhar como taxista me realiza”. É cadastrado no Easy Taxi e acho que se chama José. Acrescento um sobrenome por minha conta: José Gentil Amante dos Livros e Feliz da Silva.   

Há dois dias conheci outro leitor, do qual jamais desconfiaria: o senhor Alberto, mecânico de uma revenda de automóveis em Natal.  Ele percebeu que havia um livro (“Amrik”, de Ana Miranda, que recomendo) no carro que deixei lá para um ajuste. Quando foi me explicar alguma coisa ligada a um certo sensor, aproveitou para me abordar: a senhora gosta de ler, não é? Mal respondi, ele foi relatando sua história de leitor. Contou que, bem jovem, foi para Belo Horizonte tentar um trabalho e se hospedou na residência de uma parenta. Para seu espanto, havia caixas e mais caixas de livros na sala da casa. A parenta explicou: “Meu marido mandou imprimir 3 mil exemplares do livro de poesia que ele escreveu, agora está tudo aí encalhado”. Alberto empolgou-se, ofereceu-se para ir com o poeta às escolas. O plano: o poeta leria alguns poemas para os alunos e deixaria lá um número x de exemplares para venda a preço simpático, depois retornariam para conferir o resultado. Aos cuidados desse brilhante assessor e companheiro, o autor acabou esgotando a edição! Daí para a frente, Alberto tornou-se  leitor  de autores como Nietzsche e Balzac, e aprecia muito Jorge Amado e Lya Luft. Disse que já leu em torno de 4 mil livros e que sua grande felicidade é quando está na livraria de um shopping ou quando retira livros da Biblioteca Pública. E desabafou: “Só fico triste porque não posso adquirir os livros que gostaria”, mas se deu por um homem feliz: “Nunca precisei de remédio. Calmante? Nem ver. Ler me deixa muito bem”. Pois é, dois homens apaixonados pela leitura e desenvolvendo trabalhos pouco estimuladores dessa prática, mas o que os move é mais poderoso: é o desejo de ampliar os limites da compreensão do mundo, da vida. Na verdade, bem poderiam fazer palestras nas escolas. Até por serem leitores espontâneos talvez inspirem mais empatia nos estudantes do que... nós outros, que publicamos livros e temos lá nossos cacoetes de leitores “profissionais”. Aliás, os encontros literários bem poderiam, eventualmente que fosse, convidar esses e outros anônimos maravilhosos para falar sobre leitura. Afinal, pergunta óbvia: o que seria dos autores sem os leitores?... O leitor é a outra metade do escritor. Não importa se na pele de um taxista ou de um mecânico.

*Nivaldete Ferreira é professora aposentada pelo Departamento de Artes da UFRN. Autora de livros de poesia, literatura infantil, romance e teatro.

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