quinta-feira, 25 de agosto de 2016

Literatices

Clauder Arcanjo

Terça-feira, manhã de sol. Folheio meus livros e apontamentos, deparando-me com sentenças que me inquietam, sempre que as leio e releio.
A primeira vem dos escritos de Borges. Leiamo-la:

O estilo não parece cuidado, mas cada palavra foi escolhida. Ninguém pode contar o argumento de um texto de Cortázar; cada texto consta de determinadas palavras numa determinada ordem. Se tentarmos resumi-lo verificamos que algo precioso se perdeu.
(Jorge Luis Borges, em Biblioteca Pessoal)

Assim Borges se expressa, quando nos indica a leitura de Júlio Cortázar.
Lembro-me bem do meu primeiro contato com um conto de Cortázar: “A casa tomada”. Primorosa ficção que abre o pequeno tomo Bestiário.
Incitado pelo Bruxo argentino, corro para a minha biblioteca à cata da pequena-grande obra de Cortázar. Minutos depois, retiro-a do fundo de uma prateleira, tomada por mediocridades literárias. “Minhas desculpas, mestre Cortázar!”
Sento-me na cadeira de balanço, posta no centro da sala do meu apartamento, e entrego-me ao estilo enxuto, e falsamente despretensioso, do autor de O jogo da amarelinha. Pelas mãos e pela clarividência do crítico Jorge Luis Borges, alumbro-me, ainda mais, com o estilo narrativo presente em Bestiário.
Levanto-me, tomo outra xícara de café e volto às prateleiras da minha biblioteca. No fundo de uma gaveta, alguns impressos. Numa das páginas, a afirmação:

É evidente que a tradução vive entre o possível e o impossível e por isso nada é mais vulnerável e exposto. É um trabalho que só podemos empreender aceitando à partida uma certa margem de impossibilidade. Um trabalho que nunca estará pronto, pois sempre haverá algo que apetece fazer.
(Sophia de Mello Breyner Andresen, em Hamlet)

Levanto-me, sento-me, volto a me levantar. Enfim, inquieto-me diante dos tomos traduzidos em minha biblioteca. Mas como conhecer a riqueza de tais obras sem os olhos de um guia-tradutor?
Entendo agora por que Machado de Assis, segundo li há anos, aprendia alemão no final dos seus dias. O Bruxo do Cosme Velho era movido pelo intuito de ler Goethe na língua germânica, na língua original. Machado, eterno aprendiz.
Abro a janela, uma brisa morna acaricia minha face cansada. Na mente, um redemoinho de pensamentos. Entre eles, a lembrança do rosto triste de uma amiga, ferida pela palavra flamejante de outra “companheira de sonhos”. Seus olhos marejados não somem da minha mente, apesar das tentativas infrutíferas de tangê-los da memória.
Fecho a janela, deixando, lá fora, um luar trigueiro e doce por entre nuvens plácidas.
Deito-me cantarolando:
Don’t let me down!

Clauder Arcanjo

segunda-feira, 15 de agosto de 2016

Por onde anda Terezinha de Jesus?

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  • Se a cama de casal entrar, a senhora de cabelos brancos e olhos calmos verdes precisa ficar do lado de fora. O quartinho minúsculo de um antigo pensionato, localizado no bairro do Tirol, há cerca de 20 dias abriga uma das cantoras de maior sucesso da história de Natal, muito embora o leitor não vá encontrá-la no Spotify, tampouco nas banquinhas de CDs piratas da Avenida Rio Branco.
     
    Terezinha de Jesus lançou cinco álbuns entre 1979 e 1983, com contratos fixos pela CBS e depois pela SONY, gravou clipes para o Fantástico, foi apadrinhada por Paulinho da Viola, emprestou sua voz a composições de nomes famosos como Moraes Moreira e Sivuca, fez diversas aparições em programas da época, como o do Chacrinha, mas hoje vive da aposentadoria como autônoma e da renda extra que alcança todo mês sendo vendedora de produtos cosméticos da Natura.
     
    A vida não tem lhe poupado desafios. O mês estava começando quando Terezinha se vestia após o banho em sua casa, no bairro de Areia Preta. Ela ouviu um barulho e correu para ver o que tinha acontecido. Uma parte do morro de terra cedeu com as chuvas e invadiu o quintal, ameaçando inclusive as residências dos vizinhos.
     
    As equipes técnicas da Defesa Civil e da própria Prefeitura Municipal decidiram interditar o imóvel e outras três casas próximas. Aos 64 anos, Terezinha se viu pela primeira vez na vida sem um teto para morar e sem assistência direta do poder público, que não a orientou, segundo ela, sobre as condições necessárias para conceder aluguel social. A obra de reforma nas casas interditadas, porém, será bancada pela prefeitura.
     
    O pensionato em que por enquanto ela reside ouviu falar a partir de uma amiga, e mesmo pagando mais caro pelo novo local do que pelo aluguel da casa de Areia Preta, mudou-se na companhia de sua irmã Odaíres há cerca de duas semanas. Desde então as duas dormem em redes e passam o dia assistindo TV, único objeto da casa antiga que coube nas instalações em que se abrigam agora.
     
    “Ficou tudo na minha casa, onde há riscos de um novo desmoronamento ou mesmo de as pessoas levarem”, lamenta Terezinha, sentada em uma cadeira de plástico, encostada na porta do quartinho de número 15.
     
     
    Ao menos três vezes na semana, ela vai observar o imóvel e diz que até agora os serviços de reparo não começaram nem na sua casa e nem nas demais. “Não nos deram nenhuma previsão de quando poderíamos voltar, só disseram que seria um serviço muito rápido, mas até agora não começaram”, conta.
     
    Na casa alugada há cerca de seis anos moram ela, a irmã e o marido, atualmente passando o período de desabrigo na casa da ex-mulher. “É complicado. Meu quintal não existe mais e o muro de um dos vizinhos caiu”, reforça Terezinha, com medo do intenso período de chuvas nesta época do ano.
     
    “Eu sempre estou tentando trazer alguma coisa de lá quando vou, mas nada cabe nesse quarto. Fico ansiosa ainda por não saber quando isso vai acabar”, comenta tristonha a cantora que não pisa em um estúdio para gravar um novo álbum desde 1984, quando as portas começaram repentinamente a se fechar para ela.
     
    Questionada pela reportagem, a assessoria de imprensa da prefeitura informou que o assunto em questão deveria ser tratado com a Secretaria Municipal de Habitação, Regularização Fundiária e Projetos Estruturantes, responsável pelo programa de aluguel social e de desapropriações em Natal, mas o titular da pasta, Getúlio Batista, não retornou nossas ligações até o fechamento desta matéria. 
     
    TEREZINHA DO BRASIL
     
    Se o leitor faz parte de uma geração anterior à década de 90 certamente não desconhece o êxito que Terezinha de Jesus ou Tiazinha, como também era conhecida, obteve em âmbito nacional numa época que sequer existia o fenômeno do Facebook para compartilhar vídeos e músicas.
     
    Tudo começou em 1978, quando ela foi uma das cantoras selecionadas no “Projeto Vitrine”, da recém-criada Funarte, gravando um compacto duplo com as primeiras canções da carreira. Natural de Florânia, interior potiguar, ela já considerava o feito como a sua maior vitória até ali.
     
    O compacto duplo foi apenas uma porta para que no ano seguinte, em 1979, gravasse o primeiro LP, sendo agora uma das cantoras do catálogo fixo da gravadora CBS. Nos anos seguintes, a rotina de estúdio só aumentou e ela chegou a lançar outros quatro discos: “Caso de Amor” (1980), “Pra incendiar seu Coração” (1981), “Sotaque” (1982) e “Frágil Força” (1983), já pela SONY, gravadora com a qual manteve contrato até 1984.
     
     
    Terezinha de Jesus fazia parte de uma safra de mulheres fortes que emergiam do cenário musical do Nordeste,  como Elba Ramalho, que despontava na mesma época.  A potiguar chegou a participar de todos os programas da televisão brasileira daquele período. “Menos o de Hebe, infelizmente no de Hebe eu nunca fui, não sei por quê”, lamenta, lembrando-se do tempo áureo.
    Mesmo sem contrato a partir de 1984, quando os convites começaram a rarear, Terezinha ainda continuou no Rio de Janeiro em plena atividade com sua carreira. “O problema é que as aparições na TV eram fechadas diretamente entre a emissora e a gravadora, sempre por causa dos lançamentos de discos”, explica.
     
    A situação perdurou até o começo da década de 90, quando ela voltou de vez para Natal e participou de alguns projetos como o extinto “Seis & Meia”, além de shows esporádicos, rotina que em nada lembrava o início da década de 80, quando não conseguia atender a agenda.
     
    “Quando eu vinha para Natal visitar a família ou promover os discos, eu já aproveitava e ia direto para várias cidades do interior do RN e também aos estados vizinhos. Acabava virando uma grande e calorosa turnê nordestina”, lembra Terezinha, que viajou o país inteiro na época.
     
     
    Entre os nomes com quem era acostumada a dividir o palco está o de Paulinho da Viola, considerado pela imprensa como o padrinho da cantora. Adicione na lista ainda Moraes Moreira, Fagner, Gonzaguinha e Tim Maia, de quem foi backing vocal por um bom tempo ainda na década de 70. Dele Terezinha se lembra com sorriso largo no rosto.
     
    “Tim, quando estava de bom humor, era maravilhoso. Mas queria me fazer comer no mesmo ritmo que ele comia, porque ele comia muito”, conta dando uma gargalhada tímida, dizendo ainda que chegou a negar um segundo convite de Tim Maia para sair em turnê com ele. “Ele gostava bastante da minha voz, mas na segunda vez que me chamou eu já estava com meu primeiro LP lançado, focando mesmo a minha carreira solo”, explica.
     
     
    O DIA EM QUE QUASE FOI ENGOLIDA POR UMA LEOA
     
    Entre as várias histórias de bastidores que ela compartilha, uma chama atenção: o dia em que quase foi engolida por uma leoa, enquanto filmava cenas para o clipe de “Odalisca em Flor”, frevo composto por Moraes Moreira e Waly Salomão gravado por ela em um de seus discos.
     
    O vídeo era um dos tantos icônicos que o Programa Fantástico da Globo produzia com os artistas da época. A ideia inicial para o vídeo de Terezinha era colocá-la em cima de um elefante, com um vestido vermelho esvoaçante que havia acabado de comprar.
     
    A proposta não foi para frente por conta da própria Terezinha, que preferiu ficar em solo durante todo o vídeo, até quando durante uma cena na praia em que ela corria junto com crianças na beira do mar, um pouco à frente de uma leoa levada para as gravações com seu domador, as coisas desandaram.
     
     
    “Quando eu penso que não, sinto um peso nas minhas costas tão forte que o vestido saiu arrastando no chão. Olhei pra trás era a leoa que tinha se soltado do domador. Menino, eu corri tanto, mas tanto que só parei depois que passei de todos os caminhões da Globo”, conta a cantora em meio a risadas.
     
    Questionada se desejaria retornar aos estúdios, ela garante que é um de seus maiores sonhos, até porque sente mais saudade dos estúdios do que dos palcos. “Eu tento de todas as formas (gravar), mas sei que minha época já passou e que minha saúde não permite”, assinala. “Escolhia minhas músicas não por conta do retorno financeiro, mas pela  poesia que tinha nelas. Queria muito gravar um álbum de novo”, frisa sem esconder a emoção.
     
    A última aparição pública da artista ocorreu em março deste ano no auditório da Escola de Música da UFRN, quando Terezinha de Jesus foi homenageada pela primeira turma de canto popular da universidade. Naquela ocasião apresentou cerca de três músicas. “Me senti muito amada porque muitos que estavam ali disseram que me ouviam desde aquela época”, conclui a cantora que poderá participar de um documentário sobre sua vida atualmente em fase de pesquisa e captação de patrocínios/recursos.
     

    domingo, 7 de agosto de 2016

    sábado, 6 de agosto de 2016

    PROFESSOR UNIVERSITÁRIO É O GRANDE CAMPEÃO DO II CONCURSO LEMBRANÇA DO ÍDOLO


    O professor universitário José Romero Araújo Cardoso foi o grande campeão do II Lembrança do Ídolo, um concurso de crônicas que este ano homenageia o multi-instrumentista Sivuca.

    José Romero é natural da cidade de Pombal-PB, mas atualmente reside em Mossoró, onde leciona Geografia na Universidade Estadual do Rio Grande do Norte (UERN).

    O professor Romero virá até o município de São João do Rio do Peixe-PB, onde receberá sua premiação e troféu, durante o IX Festival de Músicas Gonzagueanas (FESMUZA), no dia 20 de agosto do corrente ano.

    A expressão máxima da autêntica cultura popular nordestina em Feira de Mangaio [1]

    José Romero Araújo Cardoso

    As feiras livres nordestinas caracterizaram-se, em um passado não muito distante, por serem verdadeiros repositórios para a comercialização da produção artesanal, as quais personificam formas perfeitas e acabadas do trabalho coletivo ou individual com pouco ou nenhum uso dos artefatos sofisticados surgidos com a industrialização.
              
    Em épocas pretéritas havia ênfase quase absoluta nas feiras livres nordestinas para a venda do que era produzido na região, ou na própria localidade, estando hoje visivelmente submetidas aos ditames contidos no comportamento da economia globalizada, sendo facilmente encontrados produtos de fora, do exterior, em consonância com a oferta de objetos e demais artes da cultura popular genuinamente regional.
              
    Nesses espaços marcantes, a interação entre as pessoas verifica-se notavelmente, fomentando formas variadas de contato, as quais vão da pechincha dos fregueses com comerciantes ao bate-papo descontraído sobre fatos e personagens locais e das redondezas, entre inúmeras outras maneiras de tangência direta da própria sociedade.
              
    Momento sublime de referência às feiras livres nordestinas encontra-se em composição musical de autorias de Severino Dias de Oliveira, mais conhecido como Sivuca (Itabaiana/PB, 26 de Maio de 1930 – João Pessoa/PB, 14 de Dezembro de 2006) e de Glória Gadelha (Sousa – Paraíba, 19 de Fevereiro de 1947 - ), a qual sintetiza de forma invulgar e extraordinária a importância assumida pelas manifestações da cultura popular enquanto marca indelével dos espaços abertos que integram economicamente os circuitos inferiores do processo de comercialização no Nordeste Brasileiro.
              
    O povo sertanejo, com suas criações, invenções, interações e maneiras como se apresenta a culinária regional, integram os refrães marcantes de uma das mais belas canções regionais, pois é notável o apelo à compra do que é ofertado através do destaque dado aos produtos. Fumo de rolo, arreio, cangalha, bolo de milho, broa, cocada, pé-de-moleque, alecrim, canela, cabresto de cavalo, rabichola, pavio de candeeiro, panela de barro, farinha, rapadura e graviola são vendidos há tempos imemoriais em feiras livres nordestinas, razão pela qual a identificação espaço-tempo é realizada sem nenhum empecilho no que tange ao entendimento por aqueles que, nordestinos de fato, escutam Feira de Mangaio, tendo em vista que, invocando conceitos pertinentes a lugar e ao espaço vivido, a tradução precisa acerca de pertencimento está explícita de forma clara e objetiva, pois as representações da geografia humana contidas em uma feira livre nordestina estão definidas com precisão, razão pela qual personagens reais do mundo dos compositores, sobretudo ao que pertence Glorinha Gadelha, estão imortalizados através da arte sublime de dois gênios de sensibilidade extraordinária, aos quais o povo do Nordeste deve agradecer eternamente pelo legado ímpar e autêntico que valoriza exponencialmente toda região. Tudo foi logisticamente invocado em Feira de Mangaio, desde a feira de pássaros à vendinha localizada de forma estratégica, a qual não pode faltar em uma feira livre nordestina, onde um mangaieiro ia se animar, tomando bicada com lambu assado, olhando para Maria do Joá, passando pelo sanfoneiro no canto da rua, fazendo floreio para a gente dançar, com Zefa de Purcina fazendo renda e o ronco do fole sem parar, dando ênfase à necessidade do sertanejo de xaxar o roçado que nem boi de carro para garantir a sobrevivência de si próprio  e da sua família, finalizando com o fomento de que alpargata de arrasto não quer lhe levar para sua labuta, pois o forró inebriante tomava conta da feira em todos os quadrantes.
              
    Causa admiração que Feira de Mangaio tenha sido composta na globalizada e cosmopolita Nova York, quando o casal residia nos Estados Unidos. A estrutura começou a se efetivar quando Glorinha Gadelha estava em uma aula de inglês, sendo concluída em um fast food da McDonalds, mas foi a bucólica e sertaneja cidade-sorriso que serviu de inspiração para um dos mais belos símbolos musicais do Nordeste Brasileiro.

    [1] Crônica vencedora do II Concurso Lembrança do ídolo, promovido pelo Grupo União São Francisco – Caldeirão Político no ensejo do IX Festival de Músicas Gonzagueanas.

    José Romero Araújo Cardoso (Mini Currículo):

    Geógrafo (UFPB). Especialista em Geografia e Gestão Territorial (UFPB-1996) e em Organização de Arquivos (UFPB - 1997). Mestre em Desenvolvimento e Meio Ambiente pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (2002). Atualmente é professor adjunto IV do Departamento de Geografia/DGE da Faculdade de Filosofia e Ciências Sociais/FAFIC da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte/UERN. Tem experiência na área de Geografia Humana, com ênfase à Geografia Agrária, atuando principalmente nos seguintes temas: ambientalismo, nordeste, temas regionais. Espeleologia é tema presente em pesquisas. Escritor e articulista cultural. Escreve para diversos jornais, sites e blogs. Sócio da Sociedade Brasileira de Estudos do Cangaço (SBEC) e do Instituto Cultural do Oeste Potiguar (ICOP). Membro da Associação Mossoroense de Escritores (ASCRIM).

    Endereço residencial:
    Rua Raimundo Guilherme, 117 – Quadra 34 – Lote 32 – Conjunto Vingt Rosado – Mossoró – RN – CEP: 59.626-630 – Fones: (84) 9-8738-0646 – (84) 9-9702-3596 – E-mail:romero.cardoso@gmail.com

    Enviado pelo professor, escritor pesquisador do cangaço e gonzaguiano José Romero de Araújo Cardoso.

    segunda-feira, 1 de agosto de 2016

    Como um livro entregue na solitária transformou preso em aluno de uma das principais universidades dos EUA

    • 30 julho 2016

    Fonte. BBC de Londres
     
    Reginald Dwayne BettsImage copyright Arquivo Pessoal
    Image caption Reginald Dwayne Betts foi preso aos 16 anos por roubo à mão armada

    O americano Reginald Dawyne Betts era um garoto estudioso que nunca havia tido problemas com a Justiça - até cometer um "erro terrível" em dezembro de 1996, aos 16 anos.
    "Um homem estava dormindo em seu carro no estacionamento do shopping de Springfield. Eu e um amigo o roubamos à mão armada e levamos seu carro", conta ele.
    "No dia seguinte, voltamos ao shopping para fazer compras e levantamos suspeitas por termos usado o cartão de crédito de outra pessoa. Saímos correndo, mas a polícia nos pegou."
    Betts foi preso e enviado a um reformatório juvenil. Três meses depois, foi julgado como adulto.
    O juiz do caso chegou a dizer, antes de dar a sentença, que não tinha ilusões de que a prisão ajudaria Betts.
    "Naquele momento pensei que ele me deixaria ir para casa, mas em seguida ele disse que eu poderia tirar algo bom dessa experiência, se assim o quisesse."
    Betts acabou provando que o juiz tinha razão. Hoje, aos 35 anos, acaba de se formar em Direito pela Universidade Yale, uma das instituições de maior prestígio dos Estados Unidos, é um poeta de sucesso. Ele diz que a virada em sua vida veio quando estava atrás das grades.

    'Milagre'

    Condenado a nove anos de prisão, ele diz ter sido mandado várias vezes para a solitária por infrações como xingar um guarda ou se recusar a ser trancado em sua cela.
    Uma dessas ocasiões provocou uma mudança radical em sua vida. "Algumas vezes acontecem coisas que parecem um milagre, e essa é uma delas."
    Ele conta que, em geral, livros eram vetados na solitária. Mas a regra não valia para detentos mantidos nese regime para sua própria proteção.
    "Você podia gritar para que alguém te mandasse um livro, e um completo estranho te enviava o que ele tinha", afirma Betts.
    Em uma dessas ocasiões, uma antologia de poemas escritos por negros, intitulada "Poetas Negros", chegou às mãos do jovem detento. "Aquilo mudou minha vida."

    'Valor à escrita'


    Livros de BettsImage copyright Reprodução
    Image caption Ler o poeta Etheridge Knight enquanto estava preso ensinou a Betts o 'valor da palavra escrita'
    Um dos poetas que Betts leu foi Etheridge Knight (1931-1991), que escreveu sobre o período em que passou preso. "Ele não ficou culpando os outros, mas descreveu seus próprios problemas, experiências e vícios. Ele me fez dar valor à palavra escrita", diz Betts.
    "Knight, em especial, foi um sujeito que virou poeta na prisão e fez sucesso com seus textos após ser libertado. Ler ele e outros poetas me fez decidir ser também um poeta."
    Betts diz que isso o ajudou a aguentar o tempo que passou na prisão e, após sua libertação em 2005, o levou para um caminho completamente diferente.
    Cinco anos depois, ele estava casado, tinha dois filhos e um emprego, estudava Literatura na faculdade e havia publicado livros antes de completar 30 anos.
    Ele é o autor de "Uma Questão de Liberdade: Memórias de Aprendizado, Sobrevivência e Amadurecimento na prisão" e das coleções de poemas "Shahid Lê a Palma da Própria Mão" e "Bastardos da Era Reagan".

    Interesse pelo Direito

    O período na prisão também despertou nele o interesse pelo Direito, mas ser advogado não era exatamente um objetivo de vida.
    Mas Betts passou a vislumbrar essa possibilidade quando escrevia um dos seus livros de poesia na biblioteca da escola de Direito de Harvard.
    "Quando estava na prisão, havia feito um curso básico de Direito, escrevi uma petição de habeas corpus por conta própria, trabalhei na biblioteca de livros jurídicos. Ao voltar para casa, participei a atuar como ativista. Meu mundo já estava dividido entre Direito e Literatura."
    Ele se inscreveu para faculdades de Direito e foi aceito em várias, entre elas quatro das universidades do grupo de elite dos Estados Unidos, a Ivy League, do qual Yale faz parte.
    "Eu havia estado preso, e todos sabiam disso. Mas, quando me formei, fui escolhido para carregar a bandeira e liderar minha classe na entrada da cerimônia. Isso foi muito legal."

    Inspiração

    Betts não esconde seu passado dos filhos. Recentemente, convidado a dar uma palestra na escola do filho mais velho, fez uma consulta a ele.
    "Perguntei o que deveria falar, e ele sugeriu que falasse de mim. Respondi que, se citasse meus livros, teria que abordar meu período na prisão. Ele disse que deveria fazer aquilo, pois poderia ser inspirador para alguém", diz Betts.
    "Então, é meu filho quem me inspira hoje. Porque é fácil sentir vergonha de alguém que foi preso, mas ele sabe que alguém pode ter sua redenção: ir para a prisão e tornar-se uma pessoa diferente. Ele sabe quem sou hoje e que não deveria esconder os meus erros."