sábado, 19 de maio de 2012

MEMÓRIA.



Quiseram  queimar livros de Cascudo.


Luiz Gonzaga Cortez.

Nos anos 60, em Natal, houve duas tentativas de queima de livros, artigos e  revistas com textos do folclorista integralista Luís da Câmara Cascudo. Uma foi abortada por populares, em 1962, em plena rua João Pessoa, nas proximidades da praça da Imprensa, esquina com a avenida Rio Branco, hoje denominada praça Presidente Kennedy. No local, a Prefeitura Municipal de Natal estava realizado uma Feira de Livros, com várias barracas e estandes instalados pelas poucas livrarias da cidade e instituições públicas e privadas. A idéia do prefeito Djalma Maranhão era prestigiar a cultura local e nacional, com a presença de escritores e intelectuais de renome nacional. O Governo do Estado era parceiro do evento cultural. O governador Aluizio Alves mandou convidar Cascudo, um dinartista juramentado, a participar do encontro de escritores. Cascudo relutou, mas terminou indo para a feira do livro, uma verdadeira festa popular. A feira durou vários dias com exposições, palestras, espetáculos artísticos-musicais variados e o povão lotava o cruzamento do centro da cidade.
Mas enquanto as pessoas compravam livros, revistas e discos e se divertiam com os espetáculos, um grupo de estudantes contestadores articularam a instalação de uma grande fogueira no Grande Ponto. Comandavam o incendiário grupo: Manuel Filgueira Filho, vulgo Pecado, Francisco Canindé do Nascimento, vulgo Pelé, Hélio Lins, vulgo Hélio Brucutu Ao invés de paus e toras de lenhas, o grupo reuniu diversos livros de Luís da Câmara Cascudo e colocou-os defronte a loja de Nestor, um comerciante magro e alto, já falecido, dono de um ponto comercial (lojinha de artesanato)  na “Galeria do Grande Ponto” ( no primeiro andar funcionou o Comitê Eleitoral de Djalma Maranhão, na campanha de 1960), o primeiro centro comercial de Natal. Enquanto colocavam os livros para serem queimados em praça pública, os estudantes, também conhecidos como anarquistas, comunistas ou, pra usar um termo mais moderno, porra-loucas, faziam discursos inflamados contra o nazi-fascismo, os gorilas, a extrema-direita, o escambau. E diziam que Cascudo tinha sido integralista,  “uma doutrina fascista”, etc, etc, e que os seus livros deveriam ser queimados. E tome falação. Outros gritavam, açulados pelos promotores do evento, “queima! “, “queima! “.
O aposentado João Pegado de Oliveira Ramalho, ex-funcionário dos Correios de Natal,  estava na feira do livro e viu toda a movimentação e correu para o local onde o exótico grupo de protestos berrava contra a obra literária de Câmara Cascudo. Outra testemunha: o aposentado Gilson Guanabara de Souza, 58, o popular “GG”, irmão do ex-comunista Gileno Guanabara de Souza, que residente no conjunto Candelária. Gilson não se lembra da data, mas João Ramalho disse que era o dia dos estudantes, 11 de agosto de 1962, e que uma passeata tinha acabado de chegar ao local para os discursos tradicionais. Ramalho lembra que muitos alunos da Escola Técnica de Comércio, fundada por Ulisses Celestino de Góis, estavam na passeata. “Estavam lá, Gilson Guanabara, “Galego da Cimaferro”, Ivan, sargento da Aeronáutica e outros cujos nomes não me recordo. Os estudantes queriam queimar as obras de Cascudinho, tenho certeza absoluta. Os discursos eram inflamados, onde hoje é a Praça Kennedy, mas que tinha outro nome. Surgiram vozes contra essa idéia , as coisas esfriaram, novas vozes surgiram e o ato não foi concretizado. Eu mesmo disse: “Isso não é maneira de protestar”. Pelo que eu pude constatar, queimar os livros de Cascudo porque ele tinha sido integralista”. Eu achei um absurdo”, disse João Pegado de Oliveira Ramalho, pesquisador da história do seu município, Campo Grande.
Já Gilson Guanabara que apontou Pelé, Hélio Brucutu e Pecado como os responsáveis pelo atiçamento dos estudantes para a queimação, em meados de maio, no dia 5 de junho de 2.000 já mudava a sua declaração, no sentido de que a manifestação foi heterogênea e “não deu para se saber quem foi que deu a idéia de queimar livros de Cascudo e os de autores considerados subversivos da feira”patrocinada pela Prefeitura Municipal. Mas confirmou a participação do trio no evento. “Sou contra queimar qualquer livro. Arrependi-me de ter enterrado muitos livros no quintal da minha casa, na rua Gonçalves Ledo, depois do golpe militar de 64. Perdi-os todos. Quanto a esse episódio na feira do livro, havia um clima de apreensão naquela época, pois temia-se que a direita queimasse a exposição e os estandes todos e culpar os comunistas depois. Então, elementos da esquerda ficavam de prontidão lá para evitar isso. Mas considerei uma afronta querer queimar livros de Cascudo”, disse Gilson Guanabara. Ex-aluno da Escola Técnica de Comércio, Gilson disse que chegaram a queimar uma árvore natalina, armada pela Prefeitura, no Grande Ponto, nas caladas da noite, e duas palhoças da campanha “De Pé no Chão Se Aprende a Ler”em Brasília Teimosa e na avenida Bernardo Vieira.
Apesar de Câmara Cascudo já ser considerado um nome de importância na cultura nacional, o ato dos estudantes não redundou em luta corporal, pois, após os discursos de alguns líderes estudantis de esquerda, todos foram para as suas casas. A manifestação juvenil não provocou aquilo que alguns escritores achavam, isto é, que qualquer palavra contra Cascudo gerava uma forte reação contrária, como pensava o falecido jornalista e escritor potiguar Genival Rabelo que escreveu que “Nísia Floresta e Cascudinho são os maiores símbolos da inteligência potiguar” e “... dizer qualquer coisa contra Cascudinho é sujeitar-se a sair apanhando” (Françoise, p. 175, edição do autor, Rio de Janeiro, 1993).
Segundo tentativa
Ao longo de 1968, o ano das manifestações estudantis e das passeatas de protestos nas principais capitais do Brasil, no já chamado ensaio geral para a resistência armada ao regime militar, diversos poetas e artistas plásticos natalenses atuavam no “ movimento do poema/processo”, dando seguimento a inusitada manifestação realizada pelo caicoense Moacy Cirne e um punhado de poetas de vanguarda, defronte ao Teatro Municipal do Rio, na Cinelândia. Os poetas concretistas rasgaram livros de poetas consagrados, “como protesto contra a mesmice lírica da poesia brasileira e para lançar de maneira radical o movimento do poema/processo”, relembra o jornalista Dailor Varela, natalense radicado em Monteiro Lobato, São Paulo.
Em Natal, a imprensa deu cobertura às pretensões dos nossos poetas concretos que anunciaram a realização de um ato de protesto igual ao da Cinelândia, aqui apelidado de  happening (uma gíria americana que eu não sei e não quero saber traduzir), em pleno Grande Ponto. “Iriamos promove-lo nos mesmos moldes  e objetivos de  espantar pela radicalidade, rasgando poetas potyguares e nacionais consagrados. O anúncio provocou um tumulto cultural na aldeia literária e cultural de Natal como jamais houve qualquer evento cultural que explodisse, espantasse toda a cidade. Guardadas as devidas proporções e época: como a Semana de Arte Moderna de 1922, em Sampa. Nosso happening derrubou as prateleiras culturais da cidade. Tanto que se fala nisso até hoje”, afirma Dailor Varela ( por escrito, lembre-se).
O bafáfá foi grande. A cidade entrou em polvorosa. A conservadora Natal agitou-se. O jornalista Sanderson Negreiros, um misto de neo-liberal e conservador, admirado do folclorista Luís da Câmara Cascudo, escreveu um artigo no Diário de Natal contra a anunciada manifestação radical. “Baixei o pau neles e considerei aqui uma maluquice sem pé nem cabeça que terminou não dando em nada”, disse Sanderson  Negreiros. O evento foi anunciado por Dailor, Falves da Silva, artista plástico e gráfico, Anchieta Fernandes, cinéfilo, Alexis Gurgel, jornalista, Marcos Silva, pintor e compositor (hoje professor da USP), Moacy Cirne, poeta,que vivia entre Natal e o Rio de Janeiro (ele é de uma abastada família de comerciantes de Caicó e Natal) e outros “poetas de vanguarda”. Conta Dailor, que a imprensa badalou a intenção dos poetas durante vários dias. Ele trabalhava na “Tribuna do Norte” e era editor de cultura, onde publicava matérias com temas de vanguarda, como a legalização da “cannabis sativa”. “O uso da maconha foi eu quem defendi”.
Pelas suas posições avançadas, Dailor diz que foi ameaçado de morte em pleno Grande Ponto pelo falecido poeta místico Walfran Queiroz, e foi objeto de uma matéria publicada na edição de 8/2/1968, em TN, com o seguinte título: “Poeta quadrado”ameaça de morte queimador de livros”. (Infelizmente, eu não li essa matéria porque estava prestando serviço militar obrigatório noExército).
“Aí um dia, eu fui chamado para uma “conversa” com o delegado Hernani Hugo, que me parece que era secretário de Segurança Pública ou coisa assim ( não, Dailor, era delegado do DOPS, Delegacia de Ordem Política e Social). Ele era na época um tipo cinematográfico que andava de branco. Fui lá e ele foi gentil comigo,talvez pelo fato de eu ser um jornalista conhecido. Me falou do happening e que não iria admitir que se queimasse obra do Mestre Cascudo e que se isso acontecesse todo mundo iria em cana. Aí expliquei pra ele: jamais a gente tinha anunciado que iria queimar obras de Cascudo. Mesmo porque não tinha sentido. Nosso objetivo era esculhambar com poetas líricos e decadentes e Cascudo era um folclorista, um estudioso da cultura brasileira”, afirma Dailor Varela. E tudo terminou nesse dia. Não houve o fogaréu boatado pelos editores. “A gente resolveu que o happening em si já tinha acontecido. Com mais espanto do que se ele tivesse sido realizado mesmo. O auê que a gente queria aconteceu, espantou a cidade”.
Atualmente editando um bonito e articulado jornal literário em São José dos Campos/SP, o jornalista Dailor Varela disse que nenhum poeta de vanguarda de Natal declarou que iriam queimar obras de Cascudo e que isso foi invenção dos jornais “para vender mais jornal, por lenha na fogueira e deixar a cidade revoltada contra nós”.
O gráfico e poeta Francisco Alves da Silva, Falves, contou-me outra versão na noite do dia 7.6.2000, no Bar de Lula, em Candelária: “De fato, não via motivo para queimar livros de Cascudo, que nunca foi poeta. Mas o delegado Ernani Hugo disse pra gente que podiam fazer o ato de protesto no Grande Ponto que ele garantia a segurança. Quer dizer, o nosso movimento chegou a sensibilizar parte da polícia, ao ponto do delegado dizer que garantiria a manifestação”, disse Falves. O encontro casual com Falves foi-me duplamente proveitoso, pois me informou que a festa de encerramento das atividades do famoso cabaré “Francesinha”, nas Rocas, ocorreu na noite de uma sexta-feira do inicio de junho de 1968. Eu estava lá com Luciano Cordeiro e mais alguns amigos e vi a exposição de obras de artes dos artistas e poetas concretos de Natal sendo observada e curtida por dezenas de prostitutas que lotaram o salão animado por uma orquestra que tocou o seu último baile. O cabaré foi demolido e no local foi construído o motel “Jóia”.


Luiz Gonzaga Cortez é jornalista
Pesquisador e sócio do Instituto Histórico e Geográfico do RN.
Ntas: Gilson Guanabara, Hélio “Brucutu” e Dailor Varela são falecidos. Este artigo foi escrito há mais de dez anos. Natal, 19.05.2012.

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