Quiseram queimar livros de Cascudo.
Luiz Gonzaga Cortez.
Nos anos 60, em Natal, houve duas tentativas de
queima de livros, artigos e revistas com
textos do folclorista integralista Luís da Câmara Cascudo. Uma foi abortada por
populares, em 1962, em plena rua João Pessoa, nas proximidades da praça da
Imprensa, esquina com a avenida Rio Branco, hoje denominada praça Presidente
Kennedy. No local, a Prefeitura Municipal de Natal estava realizado uma Feira
de Livros, com várias barracas e estandes instalados pelas poucas livrarias da
cidade e instituições públicas e privadas. A idéia do prefeito Djalma Maranhão
era prestigiar a cultura local e nacional, com a presença de escritores e
intelectuais de renome nacional. O Governo do Estado era parceiro do evento cultural.
O governador Aluizio Alves mandou convidar Cascudo, um dinartista juramentado,
a participar do encontro de escritores. Cascudo relutou, mas terminou indo para
a feira do livro, uma verdadeira festa popular. A feira durou vários dias com
exposições, palestras, espetáculos artísticos-musicais variados e o povão
lotava o cruzamento do centro da cidade.
Mas enquanto as pessoas
compravam livros, revistas e discos e se divertiam com os espetáculos, um grupo
de estudantes contestadores articularam a instalação de uma grande fogueira no
Grande Ponto. Comandavam o incendiário grupo: Manuel Filgueira Filho, vulgo Pecado, Francisco Canindé do
Nascimento, vulgo Pelé, Hélio Lins,
vulgo Hélio Brucutu Ao invés de paus
e toras de lenhas, o grupo reuniu diversos livros de Luís da Câmara Cascudo e
colocou-os defronte a loja de Nestor, um comerciante magro e alto, já falecido,
dono de um ponto comercial (lojinha de artesanato) na “Galeria do Grande Ponto” ( no primeiro
andar funcionou o Comitê Eleitoral de Djalma Maranhão, na campanha de 1960), o
primeiro centro comercial de Natal. Enquanto colocavam os livros para serem
queimados em praça pública, os estudantes, também conhecidos como anarquistas,
comunistas ou, pra usar um termo mais moderno, porra-loucas, faziam discursos
inflamados contra o nazi-fascismo, os gorilas, a extrema-direita, o escambau. E
diziam que Cascudo tinha sido integralista,
“uma doutrina fascista”, etc, etc, e que os seus livros deveriam ser
queimados. E tome falação. Outros gritavam, açulados pelos promotores do
evento, “queima! “, “queima! “.
O aposentado João Pegado de
Oliveira Ramalho, ex-funcionário dos Correios de Natal, estava na feira do livro e viu toda a
movimentação e correu para o local onde o exótico grupo de protestos berrava
contra a obra literária de Câmara Cascudo. Outra testemunha: o aposentado
Gilson Guanabara de Souza, 58, o popular “GG”, irmão do ex-comunista Gileno
Guanabara de Souza, que residente no conjunto Candelária. Gilson não se lembra
da data, mas João Ramalho disse que era o dia dos estudantes, 11 de agosto de
1962, e que uma passeata tinha acabado de chegar ao local para os discursos
tradicionais. Ramalho lembra que muitos alunos da Escola Técnica de Comércio,
fundada por Ulisses Celestino de Góis, estavam na passeata. “Estavam lá, Gilson
Guanabara, “Galego da Cimaferro”, Ivan, sargento da Aeronáutica e outros cujos
nomes não me recordo. Os estudantes queriam queimar as obras de Cascudinho,
tenho certeza absoluta. Os discursos eram inflamados, onde hoje é a Praça Kennedy,
mas que tinha outro nome. Surgiram vozes contra essa idéia , as coisas
esfriaram, novas vozes surgiram e o ato não foi concretizado. Eu mesmo disse:
“Isso não é maneira de protestar”. Pelo que eu pude constatar, queimar os
livros de Cascudo porque ele tinha sido integralista”. Eu achei um absurdo”,
disse João Pegado de Oliveira Ramalho, pesquisador da história do seu
município, Campo Grande.
Já Gilson Guanabara que
apontou Pelé, Hélio Brucutu e Pecado como os responsáveis pelo atiçamento dos
estudantes para a queimação, em meados de maio, no dia 5 de junho de 2.000 já
mudava a sua declaração, no sentido de que a manifestação foi heterogênea e
“não deu para se saber quem foi que deu a idéia de queimar livros de Cascudo e
os de autores considerados subversivos da feira”patrocinada pela Prefeitura
Municipal. Mas confirmou a participação do trio no evento. “Sou contra queimar
qualquer livro. Arrependi-me de ter enterrado muitos livros no quintal da minha
casa, na rua Gonçalves Ledo, depois do golpe militar de 64. Perdi-os todos.
Quanto a esse episódio na feira do livro, havia um clima de apreensão naquela
época, pois temia-se que a direita queimasse a exposição e os estandes todos e
culpar os comunistas depois. Então, elementos da esquerda ficavam de prontidão lá
para evitar isso. Mas considerei uma afronta querer queimar livros de Cascudo”,
disse Gilson Guanabara. Ex-aluno da Escola Técnica de Comércio, Gilson disse
que chegaram a queimar uma árvore natalina, armada pela Prefeitura, no Grande
Ponto, nas caladas da noite, e duas palhoças da campanha “De Pé no Chão Se
Aprende a Ler”em Brasília Teimosa e na avenida Bernardo Vieira.
Apesar de Câmara Cascudo já
ser considerado um nome de importância na cultura nacional, o ato dos
estudantes não redundou em luta corporal, pois, após os discursos de alguns
líderes estudantis de esquerda, todos foram para as suas casas. A manifestação
juvenil não provocou aquilo que alguns escritores achavam, isto é, que qualquer
palavra contra Cascudo gerava uma forte reação contrária, como pensava o
falecido jornalista e escritor potiguar Genival Rabelo que escreveu que “Nísia
Floresta e Cascudinho são os maiores símbolos da inteligência potiguar” e “...
dizer qualquer coisa contra Cascudinho é sujeitar-se a sair apanhando”
(Françoise, p. 175, edição do autor, Rio de Janeiro, 1993).
Segundo tentativa
Ao longo de 1968, o ano das
manifestações estudantis e das passeatas de protestos nas principais capitais
do Brasil, no já chamado ensaio geral para a resistência armada ao regime
militar, diversos poetas e artistas plásticos natalenses atuavam no “ movimento
do poema/processo”, dando seguimento a inusitada manifestação realizada pelo
caicoense Moacy Cirne e um punhado de poetas de vanguarda, defronte ao Teatro
Municipal do Rio, na Cinelândia. Os poetas concretistas rasgaram livros de
poetas consagrados, “como protesto contra a mesmice lírica da poesia brasileira
e para lançar de maneira radical o movimento do poema/processo”, relembra o
jornalista Dailor Varela, natalense radicado em Monteiro Lobato, São Paulo.
Em Natal, a imprensa deu
cobertura às pretensões dos nossos poetas concretos que anunciaram a realização
de um ato de protesto igual ao da Cinelândia, aqui apelidado de happening
(uma gíria americana que eu não sei e não quero saber traduzir), em pleno
Grande Ponto. “Iriamos promove-lo nos mesmos moldes e objetivos de espantar pela radicalidade, rasgando poetas
potyguares e nacionais consagrados. O anúncio provocou um tumulto cultural na
aldeia literária e cultural de Natal como jamais houve qualquer evento cultural
que explodisse, espantasse toda a cidade. Guardadas as devidas proporções e
época: como a Semana de Arte Moderna de 1922, em Sampa. Nosso happening
derrubou as prateleiras culturais da cidade. Tanto que se fala nisso até hoje”,
afirma Dailor Varela ( por escrito, lembre-se).
O bafáfá foi grande. A
cidade entrou em polvorosa. A conservadora Natal agitou-se. O jornalista
Sanderson Negreiros, um misto de neo-liberal e conservador, admirado do
folclorista Luís da Câmara Cascudo, escreveu um artigo no Diário de Natal
contra a anunciada manifestação radical. “Baixei o pau neles e considerei aqui
uma maluquice sem pé nem cabeça que terminou não dando em nada”, disse
Sanderson Negreiros. O evento foi
anunciado por Dailor, Falves da Silva, artista plástico e gráfico, Anchieta
Fernandes, cinéfilo, Alexis Gurgel, jornalista, Marcos Silva, pintor e
compositor (hoje professor da USP), Moacy Cirne, poeta,que vivia entre Natal e
o Rio de Janeiro (ele é de uma abastada família de comerciantes de Caicó e
Natal) e outros “poetas de vanguarda”. Conta Dailor, que a imprensa badalou a
intenção dos poetas durante vários dias. Ele trabalhava na “Tribuna do Norte” e
era editor de cultura, onde publicava matérias com temas de vanguarda, como a
legalização da “cannabis sativa”. “O uso da maconha foi eu quem defendi”.
Pelas suas posições
avançadas, Dailor diz que foi ameaçado de morte em pleno Grande Ponto pelo
falecido poeta místico Walfran Queiroz, e foi objeto de uma matéria publicada
na edição de 8/2/1968, em TN, com o seguinte título: “Poeta quadrado”ameaça de
morte queimador de livros”. (Infelizmente, eu não li essa matéria porque estava
prestando serviço militar obrigatório noExército).
“Aí um dia, eu fui chamado
para uma “conversa” com o delegado Hernani Hugo, que me parece que era
secretário de Segurança Pública ou coisa assim ( não, Dailor, era delegado do
DOPS, Delegacia de Ordem Política e Social). Ele era na época um tipo
cinematográfico que andava de branco. Fui lá e ele foi gentil comigo,talvez
pelo fato de eu ser um jornalista conhecido. Me falou do happening e que não
iria admitir que se queimasse obra do Mestre Cascudo e que se isso acontecesse
todo mundo iria em cana. Aí expliquei pra ele: jamais a gente tinha anunciado
que iria queimar obras de Cascudo. Mesmo porque não tinha sentido. Nosso
objetivo era esculhambar com poetas líricos e decadentes e Cascudo era um
folclorista, um estudioso da cultura brasileira”, afirma Dailor Varela. E tudo
terminou nesse dia. Não houve o fogaréu boatado pelos editores. “A gente
resolveu que o happening em si já tinha acontecido. Com mais espanto do que se
ele tivesse sido realizado mesmo. O auê que a gente queria aconteceu, espantou
a cidade”.
Atualmente editando um
bonito e articulado jornal literário em São José dos Campos/SP, o jornalista
Dailor Varela disse que nenhum poeta de vanguarda de Natal declarou que iriam
queimar obras de Cascudo e que isso foi invenção dos jornais “para vender mais
jornal, por lenha na fogueira e deixar a cidade revoltada contra nós”.
O gráfico e poeta Francisco
Alves da Silva, Falves, contou-me outra versão na noite do dia 7.6.2000, no Bar
de Lula, em Candelária: “De fato, não via motivo para queimar livros de
Cascudo, que nunca foi poeta. Mas o delegado Ernani Hugo disse pra gente que
podiam fazer o ato de protesto no Grande Ponto que ele garantia a segurança.
Quer dizer, o nosso movimento chegou a sensibilizar parte da polícia, ao ponto
do delegado dizer que garantiria a manifestação”, disse Falves. O encontro
casual com Falves foi-me duplamente proveitoso, pois me informou que a festa de
encerramento das atividades do famoso cabaré “Francesinha”, nas Rocas, ocorreu
na noite de uma sexta-feira do inicio de junho de 1968. Eu estava lá com
Luciano Cordeiro e mais alguns amigos e vi a exposição de obras de artes dos
artistas e poetas concretos de Natal sendo observada e curtida por dezenas de
prostitutas que lotaram o salão animado por uma orquestra que tocou o seu
último baile. O cabaré foi demolido e no local foi construído o motel “Jóia”.
Luiz Gonzaga Cortez é
jornalista
Pesquisador e sócio do
Instituto Histórico e Geográfico do RN.
Ntas: Gilson Guanabara, Hélio “Brucutu” e Dailor
Varela são falecidos. Este artigo foi escrito há mais de dez anos. Natal, 19.05.2012.