Além do arco-íris
“Meu olhar é nítido como um girassol.
Tenho o costume de andar pelas estradas...
E o que vejo a cada momento,
É aquilo que nunca antes tinha visto...
Sinto-me nascido a cada momento,
Para a eterna novidade do mundo”
(Fernando Pessoa)
Francisco Edilson Leite Pinto Júnior.
Os
despertadores são terríveis! Eles têm a difícil missão de nos alertar
de que nem todo dia frio, terá um bom lugar para se ler um livro...
Cinco horas manhã, de um sábado, e o danado toca de forma estridente:
“Levanta-te e anda! levanta-te e anda!”. Bem que ele até quis não dar
ouvidos à intimação do despertador, mas a falta de um cartão corporativo
do governo para pagar as suas contas, falava mais alto: “Vai trabalhar
vagabundo; vai trabalhar criatura!”.
Chovia
lá fora! E mesmo o frio adentrando ao quarto, não havia outra
alternativa. Teve que se levantar, mas não antes de olhar para o lado.
Viu a sua bela esposa dormindo como um anjo. Quis ficar abraçado com
ela, mas não tinha mais tempo a não ser de fazer um rápido cálculo de
quanto a amava... e o resultado foi: 1008! Era o número de Tensões
Pré-Menstruais (TPM) de convivência! Isso sim é que é amor!
Ao
chegar ao banheiro, ele constatou que não há frio de rachar que não
possa piorar: a resistência do chuveiro tinha queimado na noite
anterior. “Mas a vida o que quer da gente não é coragem?!” Pensou...
Então, ligou o chuveiro e foi para debaixo dele: “tomara que Heráclito
tenha mesmo razão quando disse que o universo é uma dança de opostos,
onde cada coisa se transforma em outra: coisas frias esquentam”, pensou
ele novamente.
Antes
de sair, fez o ritual de sempre: beijou o filho e a esposa amada (1008
vezes de TPM solidária), como se fosse a última vez... Afinal, é tudo
tão incerto não é mesmo?! E incerto seria o caminho que o levaria ao
hospital, para mais um plantão. Pois, a noite toda de chuva, castigando
as ruas já tão castigadas de anos de desgovernos, na sua cidade, fazia
com que o seu caminho de sempre, tivesse que ser mudado... E haja
alagamentos! - Praguejou ele.
Coitado!
Esqueceu-se ele do que certa vez disse o filósofo imperador Marco
Aurélio: “Todas as coisas são entremeadas umas às outras; um laço
sagrado as une; não há uma coisa sequer que esteja isolada de outra”.
Então, se por um lado à mudança de rota o fez percorrer um caminho mais
longo; por outro, o permitiu “curar” a sua vista cansada, diagnosticada
há tanto tempo, por Oto Lara Resende: “O que nos cerca, o que nós é
familiar, já não desperta curiosidade. O campo visual da nossa rotina é
como um vazio... nossos olhos se gastam no dia-a-dia, opacos. É por aí
que se instala no coração o monstro da indiferença”.
Mudança
de rota; mudança de visão! Que lindo arco-íris, ele percebeu mais
adiante. Olhou para o relógio. Ainda restavam alguns minutos para não
chegar atrasado ao seu destino. Por isso, parou o carro, pegou o celular
e fotografou o arco-íris. E neste momento, teve a “consciência cósmica”
de que algum tesouro o esperava para ser descoberto naquele dia. Sim!
Ele se lembrou da sabedoria de Epicuro: “Deus introduziu o homem para
ser um expectador de seus trabalhos, e não apenas um expectador, mas um
intérprete”...
Chegou
ao hospital. Passagem do plantão. Ele ouviu atentamente todos os casos,
mas um chamou-lhe mais atenção: 33 anos, era a mesma idade em que seu
pai tinha quando faleceu. Trinta e três anos era a idade da jovem
paciente, portadora de uma neoplasia avançada, cujo fim se aproximava.
Ao chegar à beira do seu leito, ele teve uma surpresa. A acompanhante da
paciente era sua irmã gêmea idêntica (univitelina). Ali ele percebeu:
juntas, lado a lado, vida e morte; A que ficava e a que partia. E neste
momento, de repente, não mais do que de repente, ele viu o seu tesouro
que estava além do arco-íris... Ele presenciou uma das cenas mais belas
vistas nestes 25 anos de profissão. Sim! Existe beleza também na
tristeza. Pois, “As mais belas harmonias vêm dos opostos”... Vida e
morte!
Ele,
temporariamente curado da sua vista cansada, viu algo que ficará
eternamente guardado em sua lembrança, pois como dizia Drumonnd: “O
eterno é tudo aquilo que dura uma fração de segundo, mas com tamanha
intensidade que se petrifica e nenhuma força o resgata”... Ele viu a
irmã/acompanhante, abrir a sua bolsa, pegar um frasco de creme
hidratante e massagear os pés da sua metade que estava morrendo.
Massageava e chorava...
Pés... Ele lembrou-se que vem da palavra “podos” em grego, que está relacionado a palavra “paidos”, que
significa criança. Ou seja, a irmã/acompanhante - melhor do que muita
morfina, ou do que qualquer antibiótico de última geração-, estava
cuidando dos pés da sua metade que ia partir. E cuidar dos pés de alguém
significa cuidar da criança que está nela... e ninguém retornará ao
reino de meu Pai se não voltar a ser criança novamente, não é mesmo?
Pois
bem! Ele, diante daquela grande lição de amor, aproximou-se da
irmã/acompanhante e perguntou-lhe se poderia fazer alguma coisa por elas
duas: a vida e a morte. A resposta foi: “Deixe-me apenas ficar aqui,
doutor, junto dela, que o senhor já está fazendo muito por nós duas!”.
Ele
tocou no ombro da irmã, ao mesmo tempo em que tocou na mão da paciente.
Balançou a cabeça, não apenas como um consentimento, mas sim, como uma
reverência àquele momento. Então, dirigiu-se ao quarto de repouso, com a
desculpa de que ia pegar o seu estetoscópio, mas na verdade ele queria
mesmo era ficar sozinho, para poder deixar as lágrimas escorrerem pelo
seu rosto, sem ser visto (bobagem! Homem chora sim!)... e ele chorou,
agradecendo a Deus por tudo: pela esposa, pelo filho, pela chuva, pela
resistência queimada do chuveiro, pelas ruas alagadas, pela sua
profissão e mais ainda por poder, naquele dia, conseguir enxergar além
do arco-íris...
P.S. Dedico este texto a neta de Fernando Pessoa, a enfermeira Renata Lima Pessoa (ela sabe o porquê...).
Francisco Edilson Leite Pinto Junior– Professor, médico e escritor.